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O MARCO CIVIL DA INTERNET E A RESPONSABILIDADE POR DANOS DECORRENTES DE CONTEÚDO GERADO POR TERCEIROS EM COTEJO COM O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E OUTRAS IMPLICAÇÕES

Desde 2014 vigora a Lei 12.965, conhecida como Marco Civil da Internet. A referida norma presta a estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Assim, regula e impõe parâmetros para o correto uso da internet no país.
A norma tutela objeto (uso da internet) essencialmente contemporâneo, em pleno estado de ebulição, sobretudo nessa era das “fake news”, perfis falsos em redes sociais, disseminação de discursos de ódio (religioso, político, esportivo, entre outros), racismo digital, violação aos direitos das mulheres no âmbito da internet, etc.
    No âmbito dessa tutela, o Marco da Civil da Internet traz regras para a formatação da responsabilidade civil dos provedores de internet e dos provedores de aplicações de internet quanto a conteúdos gerados por terceiros. Cabe citar seus arts. 18 e 19, caput:
Art. 18 – O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Art. 19 – Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
   Reparem que a Lei 12965/14, com tais dispositivos, protege significativamente os provedores de conexão à internet e os provedores de aplicações de internet (Facebook, Youtube, entre outros) da responsabilidade por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros. Nessa linha, se um determinado usurário do Facebook, p. ex., gera ou compartilha um conteúdo capaz de causar prejuízo a outrem, tais normas dariam uma camada de proteção ao Facebook, que somente seria responsabilizado a indenizar o prejuízo caso tivesse recebido ordem judicial específica para tornar o conteúdo indisponível e não a cumprisse. Nessa perspectiva, a princípio, os provedores de internet e de aplicações de internet não teriam o dever de fiscalizar as atividades públicas, veiculações e publicações de seus usuários, o que favoreceria a liberdade de expressão.
   A questão tem gerado polêmica, incluindo debates no plano constitucional. Observa-se que o art. 19, ao introduzir a norma, faz questão de justificar que tal regra foi adotada “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura (…)”. Vale lembrar que a liberdade de expressão é direito fundamental garantido pela Constituição Federal, com disposição expressa em seu art. 5º, IV.
   A liberdade de expressão também é um dos pilares adotados pelo próprio Marco Civil da Internet (Lei 12965/14), em seu art. 2º, que diz: “A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: (…)”. O art. 3º da Lei 12965/14 ainda dispõe: “A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;”.
   A liberdade de expressão, de um modo geral, tem sido o argumento básico daqueles que defendem a camada de proteção dada pela Lei 12965/14 aos provedores de internet e de aplicações de internet. Geralmente filiam-se a essa corrente as empresas de tecnologia voltadas à internet, startups da internet, entre outras.
Do outro lado também existem argumentos relevantes. A mesma Constituição Federal que garante a liberdade de expressão, também garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, bem como o direito de indenização pelos danos materiais e morais derivadas de eventual violação (art. 5º, X da CF).
   O Marco Civil da Internet, de igual modo, também preconiza tais fundamentos e garantias. O art. 3º da Lei 12965/14 também elege como princípios em seus incisos II e III a “proteção da privacidade” e a “proteção dos dados pessoais, na forma da lei”, respectivamente. O art. 7º da mesma lei ainda garante aos usuários em seu inciso I a “inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
   Nessa outra perspectiva, a limitação da responsabilidade dos provedores de internet e de aplicações de internet prevista nos arts. 18 e 19 da Lei 12965/14 é que seria inconstitucional.Tudo aponta para a existência de um conflito entre princípios e garantias constitucionais.
Essa polêmica jurídica compreende essencialmente o objeto do Recurso Extraordinário (RE) n. 1.037.396, em trâmite no Supremo Tribunal Federal. Ainda não houve julgamento. Mas o tema já recebeu repercussão geral, reconhecida pelo ministro Dias Toffoli.
   No caso objeto desse Recurso Extraordinário, o Requerente pretende indenização diante do Facebook por danos que teria sofrido em virtude de conta falsa, que se passava por si, publicando impropérios nas redes sociais. Em decisões anteriores, a primeira instancia havia originalmente negado indenização ao Requerente, fundamentando a negativa no art. 19 da Lei 12965/14 e na ausência de ordem judicial anterior direcionada ao Facebook. Mas a segunda instância reformou a sentença para estabelecer indenização no valor de R$ 10.000,00 em detrimento do Facebook, justificando que condicionar a atuação do Facebook à ordem judicial anterior específica significaria isentar os provedores de aplicações da responsabilidade indenizatória, contrariando o Código de Defesa do Consumidor e o art. 5º, inc. XXXII da CF, que garante que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.”. Através do Recurso Extraordinário o Facebook sustenta a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, e assim tenta nova reforma da decisão.
   A discussão dessa matéria apresenta-se à apreciação do STF em momento de tensão social, política e jurídica sobre o assunto. É inegável que os recentes acontecimentos políticos envolvendo as famigeradas “fake news”, – muitas, inclusive, trazendo nomes de políticos e dos próprios ministros do STF – podem acabar influindo no resultado dessa questão. Temos notado no cenário pátrio uma maior tendência dos discursos de combate às “fake news” a qualquer custo. Entretanto, o receio jurídico que apresento é que a simples declaração de inconstitucionalidade do art. 19 da Lei 12965/14 poderia culminar em uma maior ingerência (e possivelmente censura) a nível dos próprios provedores de aplicações de internet, que passariam a ter responsabilidade direta por todo e qualquer conteúdo que seus usuários venham a publicar.
   É nessa linha que o tema apresenta-se bastante complexo. Isso porque as redes sociais vêm cada vez mais sendo utilizadas para denunciar práticas ilícitas e opiniões variadas sobre as instituições brasileiras, e não apenas para disseminar “fake news”, discursos de ódio, racismo, entre outros. Certamente muitas verdades publicadas nas redes sociais foram incialmente taxadas de “fake news”. Não me parece producente, neste ponto, limitar o poder que as redes sociais conferem ao público, à massa, impondo aos próprios provedores que façam esse controle, sob pena de responsabilidade direta.
Particularmente, entendo que o art. 19 da Lei 12965/14 não é inconstitucional. Também entendo que a norma nele exposta não contraria o Código de Defesa do Consumidor, nem o sistema de proteção ao consumo e o direito de indenização do consumidor. Pelo contrário, vejo que a norma contida no Marco Civil da Internet é compatível e dever ser interpretada em conjunto/consonância com os ditames da Constituição Federal e os direitos do consumidor. A própria lei 12965/14 assim direciona em seu art. 7º, XIII, quando assegura a “aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet”. A meu ver, com todo o respeito a quem pense de modo diverso, não há verdadeiro conflito de princípios constitucionais, pelo menos não nessa questão. Passo a explicar.  

Entendo que mesmo considerando o art. 19 da Lei 12965/14, as falhas ou defeitos nas prestações dos serviços cometidas pelos provedores de internet continuam a ser tutelas pelo CDC (art. 14 e 20 do CDC), culminando invariavelmente na possibilidade de condenação dos provedores ao pagamento de indenizações por eventuais danos causados. Veja, p. ex., o caso do Recurso Extraordinário acima citado: repare que na essência, antes de ser um caso de veiculação de conteúdo lesivo por terceiro, o Facebook aceitou a criação de perfil falso. Foi esse perfil falso que causou os danos cobrados pelo Requerente. Um perfil sobre o qual sequer se tem ideia de quem está pro trás. Entendo ser caso de caracterização de defeito no serviço, pois não garantiu segurança que dele era esperada (art. 14 do CDC). Sendo caso de defeito no serviço, inegável a possibilidade de responsabilização direta do Facebook, independentemente do que preceitua o art. 19 da Lei 12965/14.
   Ou seja, a legislação pátria continua a tutelar as situações de defeito no serviço, possibilitando a responsabilização direta do provedor de internet e de aplicações de internet, conforme o caso, independentemente do art. 19 da Lei 12965/14.
   A questão é que nem sempre a conduta do provedor será defeituosa. Veja, p. ex., no caso próprio das “fake news”. Realmente seria impossível e inimaginável exigir que o provedor de internet investigue a veracidade de cada notícia e fato que seus usuários pretendem publicar na rede antes que o façam. Sejam tais conteúdos verdadeiros ou falsos, é impraticável que o provedor investigue cada um deles. Tal investigação somente pode ocorrer em um ambiente processual, resguardado pelo contraditório e ampla defesa, possibilitando manifestação não apenas a quem acusa a falsidade como também àquele que defende a veracidade da informação publicada. Uma simples notificação administrativa do pretenso lesado ao provedor não torna possível a solução da controvérsia. É isso que o art. 19 da Lei 12965/14 regula e garante. O provimento definitivo acerca da veracidade ou falsidade de uma notícia publicada, bem como as respectivas consequências, cabe somente ao poder judiciário diante do caráter essencialmente litigioso e controverso que assume a matéria entre as duas partes envolvidas. O veículo utilizado, no caso o provedor de internet, fica no meio dessa relação sem ter ações a tomar.
   Por óbvio que há condutas de plano detectáveis por ilícitas e lesivas. Como é caso da exposição de material sexual explícito e fotos de nudez. Situações que prescindem de análise judicial para serem identificadas como lesivas e não aptas a serem publicadas. São os casos tutelados pelo art. 21 do Marco Civil da Internet:
   Art. 21 – O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
   Outras situações óbvias de agressão aos direitos dos usuários e de terceiros também podem assim ser tutelados analogamente, como p. ex., manifestações de racismo, de discriminação de gênero, de apologia a crime, terrorismo entre outros. Situações tais como essas possuem lesividade facilmente detectável, e por isso exigem atenção imediata dos provedores assim que meramente notificados pelos próprios usuários ou lesados, sob pena de incorrerem em defeito no serviço, nos termos do CDC, por não garantirem a segurança que se espera do serviço.
    Resta aguardar a postura do STF sobre o tema. Vejo que a decisão mais sensata seria a manutenção da constitucionalidade do art. 19 da Lei 12965/14. A melhor interpretação a ser dada ao dispositivo é justamente a sua aplicabilidade conforme a constituição de modo a aplicá-lo em consonância com as normas de proteção ao consumo, e dentro delas resguardados os casos de responsabilização direta dos provedores por defeitos no serviço, que já garantem o direito de indenização aos consumidores caso a caso.

Vinícius de Freitas Bortolozo – Sócio